LOÏE. 14

Corpos, câmeras e ecrãs: ensaiando outras coreografias possíveis 

11 de abril de 2024
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Español
Português

Introdução 

Inicio este ensaio com uma confissão: creio que gostaria mais do exercício da escrita se este não exigisse minha permanência em um assento frente à tela. Percebo uma inquietação em meu corpo, uma agitação que o leva a dançar pela sala, passear pelas ruas, lavar a louça, enfim, qualquer atividade que não tenha a cadeira como molde da carne e o ecrã como alvo dos olhos. Não é minimamente estranho pensar na porção de tempo que passamos sentados e suspensos pelas telas ao longo de nossa existência? A partir de uma perspectiva coreográfica, a contemporaneidade e seus gadgets não estariam impondo determinadas posições, movimentações e sequências em nossa vida ordinária? Quais seriam os efeitos sofridos individual e coletivamente desta reprodução pré-formatada de ações no cotidiano? Estes objetos permitiriam a execução de outros gestos? Neste texto, busco tecer uma reflexão introdutória sobre a relação entre o corpo e os dispositivos de mediação imagética na era digital, apresentando algumas abordagens dentro do contexto da arte contemporânea que subvertem a coreografia vigente entre humanos e máquinas.

Nas últimas semanas, estive mergulhado em discussões (presenciais e remotas) e páginas (de papel e de pixels) que tratam deste desconforto pelo qual passo e de que provavelmente compartilho com muitas outras existências sentadas e suspensas. Estas expressões, tal como outras utilizadas na próxima seção, empresto do teórico da comunicação Norval Baitello Junior. Com mestres referenciais de peso (Dietmar Kamper, Harry Pross, Hans Belting, Vilém Flusser, Aby Warburg, etc.), Baitello se debruçou sobre as teorias da mídia a partir de um recorte corporificado, levando-o a escrever O Pensamento Sentado: Sobre Glúteos, Cadeiras e Imagens (2012) e sua continuação Existências Penduradas: Selfies, Retratos e Outros Penduricalhos (2019). Tais leituras compõem a base textual desta incipiente reflexão que brota de um incômodo sensorial de longa data.

A dança dos sentados e suspensos

Comecemos então pelos ecrãs, estas telas quadriláteras que medeiam a nossa comunicação. Poderíamos dizer, para início de conversa, que eles re-organizam a complexidade do mundo tridimensional em retângulos de duas dimensões: altura e comprimento. Subtrai-se a profundidade do espaço, resultando em um plano transfigurado da realidade, através do qual emitimos e recebemos mensagens, assim como realizamos toda a sorte de funções. Sedutoras iscas que capturam nossa mirada, os ecrãs nos transportam para outros mundos e, quando utilizados em altas doses, podem também vir a ser verdadeiras arapucas que nos aprisionam no âmbito virtual. Em frente aos notebooks, por exemplo, investimos horas a fio e temos a impressão de que realizamos uma porção de coisas, devido à intensa atividade mental, óptica e auditiva que são exigidas por tais experiências mediadas. No entanto, perceba: nosso corpo permanece em torpor durante essas operações, fragmentado nos quadris e nos joelhos, pontos estratégicos de nossa mobilidade. Os glúteos, músculos de sustentação da posição ereta, acabam por se atrofiar e se tornar inertes almofadas, reforçando a perda da escuta do corpo e de sua necessidade de movimento. Imóveis e sedados, perambulamos incessantemente no mundo imaterial que é aberto por essas janelas. Neste neonomadismo, habitamos um não-espaço, um vazio meio-de-campo e viramos voyeurs devoradores de imagens. Consumimos e, em alguma medida, tornamo-nos planos retangulares sem volume, peso, textura, cheiro ou sabor – e isto nos dói, pois somos matéria e desejamos ocupar o espaço, percorrer o campo em sua totalidade, com todos os sentidos e os riscos inerentes à experiência tangível.

Aplanado, o corpo contemporâneo segue sendo ressentido devido à relação desproporcional que tece com uma miríade de dispositivos. Como que conduzidas por um fio invisível, nossas cervicais são flexionadas para manusear os celulares, através dos quais usamos uma série de aplicativos gratuitos, porém com custos e prejuízos imensos ao nosso eixo vital. Sentados ou caminhando, permanecemos alienados em nossos gadgets, cabisbaixos e dessintonizados do entorno mais próximo, do espaço ao redor, de quem passa por nós e do que acontece em volta, aos lados, acima e atrás. “Vivemos em uma era em que a imagem tenta impor ao corpo seus parâmetros”, pontua Baitello (2012, p.91), e através desta imposição, nossas existências não só são aplanadas, como também suspensas ao reino rarefeito e sobre-humano das imagens. Neste domínio, impera um senso de idealidade eterna: enquanto os corpos são reais e imperfeitos, sujeitos à ação do tempo e da morte, as imagens se mantêm intactas. Com a popularização dos smartphones, equipados com câmeras de alta qualidade, surge outro gesto coreográfico popular: o fio invisível, desta vez, estende a cervical enquanto lançamos nossos telefones ao alto, acionando suas lentes para capturar nossa narcísica imagem em primeiro plano, instantaneamente pronta para ser exposta e orbitar por tantos outros ecrãs. Não à toa, distúrbios de autoimagem tiveram um aumento significativo junto à explosão das selfies, com seus filtros, falseamentos e remoções de quaisquer marcas indesejadas do reino da matéria. 

Maquinando outros gestos 

Retomando as questões introdutórias, volto a indagar: quais outros gestos coreográficos as tecnologias da imagem seriam capazes de fazer emergir? Encontro no terreno da arte contemporânea, especialmente no recorte das instalações interativas, um terreno fértil para abordagens subversivas com tais dispositivos. Trago neste ensaio três trabalhos que contam com câmeras, ecrãs e a participação do público, através da qual as obras são ativadas. São elas: Cidade de Abstratos (2001) do estadunidense William Forsythe, Liminal (2018) do canadense Louis-Philippe Rondeau e Castelo Neon (2022), meu trabalho autoral cujo segundo protótipo se encontra em fase de desenvolvimento. 

  • 1. William Forsythe – Cidade de Abstratos (2001)

Já que estamos utilizando aqui o termo “coreografia” a fim de explicitar as formas pelas quais as relações vetoriais entre corpos e dispositivos são organizadas no espaço, comecemos nossa breve análise por Forsythe, artista que introduziu o conceito de  “objetos coreográficos” e possibilitou a proliferação do pensamento coreográfico para além do domínio da dança. Segundo o artista norte-americano, os objetos coreográficos instigam processos experienciais no corpo que são capazes de fornecer, a quem se envolve com eles, uma consciência aguda de si mesmo, das respostas físicas e mentais geradas por nossas faculdades heuristicamente orientadas. Mas como isto se aplica quando os objetos coreográficos se resumem ao nosso recorte, isto é, as câmeras e os ecrãs? 

«Cidade de Abstratos», William Forsythe, 2001.

 

Cidade de Abstratos, obra criada há mais de vinte anos e exibida extensivamente em diversos países até o momento presente, é um trabalho de Forsythe que faz uso destes dispositivos como objetos coreográficos. Segundo ele, «por meio de tentativa e erro, os espectadores aprendem a se ativar para saber mais sobre seu papel na construção das imagens na tela. O resultado são coreografias inadvertidas, iniciadas por meio de investigação, não por intenção”. Tive o privilégio de experimentar de corpo presente esta obra na primeira exposição do artista no Brasil, realizada no SESC Pompéia (São Paulo) em 2019. Era fascinante perceber como as distorções espaciais e temporais apresentadas na grande tela tornavam-se mísseis altamente eficazes ao criarem um espírito de experimentação no público, o qual investigava autônoma e ativamente formas pelas quais seus movimentos corporais no espaço físico poderiam servir de inputs para outputs distintos e instigantes nos ecrãs. Repentinamente, a sala se encontrava repleta de corpos dançantes com gestualidades diversas, em especial se compararmos com os gestos que reproduzimos e avistamos com frequência nas telas cotidianas: sorrisos compulsórios, poses estereotipadas, dancinhas padronizadas, corações com os dedos, sinais de V, hang loose ou até mesmo mini hang loose (sim, chegamos neles).

  • 2. Louis Philippe-Rondeau – Liminal (2018)

Na obra Liminal, o canadense Louis Philippe-Rondeau utiliza um princípio similar ao de Forsythe, ainda que com suas particularidades. O artista, cuja investigação é centrada nas questões da pós-fotografia, desenvolve dispositivos que exploram a autorrepresentação de forma lúdica e não convencional, buscando revelar o corpo do público em suas obras instalativas sob uma luz diferenciada. Também tive o prazer de presenciar este trabalho na primeira edição da Nova Bienal Rio de Arte e Tecnologia, que ocorreu no Museu do Amanhã (Rio de Janeiro) em 2023. Segundo o texto curatorial da exposição, Liminal é uma instalação interativa que evoca a passagem inexorável do tempo. Ela busca materializar o limite entre presente e passado. Um arco de luz aparece na escuridão: é um portal temporal. Ao cruzarmos esse limiar, nosso reflexo projetado na parede adjacente parece distribuído no tempo graças à técnica de slit-scan aplicada. Nessa metáfora visual, vemos nossa própria imagem desvanecendo inexoravelmente”.

Inspirado na técnica fotográfica slit-scan do século XIX, Rondeau em Liminal, tal como Forsythe em Cidade de Abstratos, também faz uso da distorção como um recurso para engajar a participação ativa do público e criar novas formas dos participantes enxergarem a si mesmos enquanto se movem. As imagens dos participantes, captadas no arco e refletidas em perpétuo movimento no ecrã, acabam por ser uma representação da implacabilidade do tempo – tudo que é vivo desvanece. Como a todo momento a tela em branco é reconstituída (ou seja, a imagem dos corpos não permanece no ecrã por mais de alguns segundos), Rondeau desmantela o estatuto de idealidade eterna do reino da imagem. Este simples gesto, associado ao aspecto distorcido da técnica aplicada, permite que lidemos com nossa autorrepresentação de maneira mais leve e divertida, afinal, por que não se envolver despretensiosamente com o tempo brincante evocado pela obra se suas imagens refletidas sumiriam em instantes? Percebo essa questão presente quando fotografo práticas de dança livre, com teor essencialmente experimental: a câmera altera o campo, ora gerando um efeito inibidor quando algumas pessoas tomam consciência de que estão sendo observadas e capturadas, ora levando a produzir um gesto mascarado, hiperconsciente, que mais condiz com a lógica da aparência. Talvez fornecer ao participante a chance de sua imagem desaparecer das telas em poucos segundos seja um grande incentivo para emergir o gesto próprio da experiência.

«Liminal», Louis Philippe-Rondeau, 2018, ph. Martin Tremblay

 

  • 3. Lucas Saccon – Castelo Neon (2022)

Também inspirado na impermanência e em uma técnica que utilizo extensamente em meu trabalho fotográfico, a longa exposição, concebi minha primeira instalação interativa, Castelo Neon[1]. Um diferencial chave desta obra em comparação às anteriores é que seu míssil coreográfico não envolve a distorção da imagem corporal, mas sim seu total obscurecimento. Neste trabalho, a câmera capta a imagem do espaço expositivo em plena escuridão, impedindo o reconhecimento dos indivíduos ali presentes e, assim, criando uma atmosfera convidativa para experimentar o movimento corporal – estratégia antiga e utilizada em quaisquer pistas de dança. Em Castelo Neon #1, busquei criar uma ambiência propícia para o movimento emergir, obscurecendo aqueles que movem e iluminando o fenômeno do movimento isoladamente, façanha que pude levar a cabo através de duas táticas. A primeira consistia em fornecer um “pincel digital” ao público: em um painel de LED adjacente ao espaço da instalação, um QR Code direcionava o celular de cada participante para uma ferramenta virtual que permitia preencher a tela inteira do dispositivo com um matiz à sua escolha. A segunda estratégia se baseou em utilizar linguagem programacional para adulterar a imagem projetada nas três paredes, tornando visível o rastro cromático que era realizado pelo movimento dos celulares em tempo real. Assim, o público era capaz de pintar com seus próprios dispositivos o espaço em que se situava, fazendo emergir rabiscos evanescentes, aparecendo e desaparecendo continuamente.

“Castelo Neon #1”, Lucas Saccon, 2022. ph: Sofia Reis e Isadora Pacini

 

Nesta pintura coletiva, algumas instruções poéticas eram apresentadas no painel de LED adjacente ao espaço da instalação, convidando o público a explorar ludicamente diferentes qualidades de movimento que concernem às noções labanianas de espacialidade e temporalidade. Castelo Neon busca estabelecer um terreno democrático para a emergência de novos gestos coreográficos: quando os indivíduos desaparecem e somente os rastros luminosos são projetados, pouco importa se alguém gosta ou não de se enxergar, se é um dançarino profissional ou leigo; o que vigora neste trabalho é a possibilidade de experimentar o fenômeno do movimento inadvertidamente, sem espaço para autocensura, inflação de ego ou nível de performance. Ademais, Castelo Neon possui o intento de instaurar um espaço-tempo extraordinário, no qual não só é fornecida ao público a chance de experimentar as nuances da motricidade, como também de deixar se deslumbrar com a experiência estética das luzes, cores e formas projetadas sobre as paredes do espaço expositivo, amalgamadas ao som de trilhas imersíveis escolhidas a dedo. Na ativação do primeiro protótipo da obra, os celulares dos participantes criavam relações vetoriais extrínsecas no espaço físico, como se aquele fio invisível citado no início deste ensaio os conduzisse muito além do sobe-e-desce da coluna cervical, engendrando investigações corporais mais integrais e exploratórias. Embora com grande êxito, para o segundo protótipo da instalação a ser ativada ao fim de 2024, estou desenvolvendo formas de libertar ainda mais o movimento e iluminá-lo de outra maneira: Castelo Neon #2 talvez não permitirá o uso de celulares, porém contará com objetos luminosos vestíveis.

Conclusão

Vimos aqui três abordagens distintas que utilizam as tecnologias da imagem como objetos coreográficos, producentes de outros gestos, seja através de distorções, desvanescências ou desaparecimentos. Os três trabalhos instalativos instauram ambiências que são capazes de desfazer a coreografia estática do sentado, imposta pelas câmeras e ecrãs que nos rodeiam na vida ordinária, inclusive desmanchando os gestos estereotipados que geralmente se associam a estes dispositivos. Através da emergência de gestualidades autônomas em detrimento de ações mais padronizáveis, tais obras não deixam de gerar no público um senso de pertencimento, ao passo que os corpos se situam em um terreno comum de experimentação e são transfigurados nos ecrãs sob um mesmo efeito. Ainda que as telas nas instalações continuem a suspender nosso olhar, suas grandes dimensões permitem que tenhamos uma noção ampliada do espaço ao redor e de quem está inserido nele. Não se trata de uma coreografia humano-máquina solitária, tal como geralmente vivenciamos com os gadgets da contemporaneidade. Estes espaços híbridos são compartilhados entre pessoas, isto é, a relação de vetores neles organizada permite um encontro da ordem do presencial, abrindo brechas para coreografias coletivas em última instância. As imagens resultantes desses trabalhos obedecem, portanto, mais aos parâmetros de alteridade que muitas das imagens produzidas por nossos aparelhos individualizados e individualizantes. Apropriando-se dos artifícios somente viabilizados no domínio da imagem técnica, tais obras geram campos de ação e libertam gestos investigativos antes inexprimíveis, dando vazão a formas corporificadas de produção de conhecimento. Do âmbito digital, por fim, extrai-se sua potência analógica de retorno à carne[2].

 

***

[1] A ativação do primeiro protótipo da obra se deu no evento Hiperorgânicos 10, realizado em novembro de 2022 na Inovateca (Parque Tecnológico da UFRJ) pelo grupo NANO (Núcleo de Arte e Novos Organismos da UFRJ) e seus coordenadores, Guto Nóbrega e Malu Fragoso. O segundo protótipo da obra está sendo desenvolvido com o intuito de ser apresentado em novembro de 2024.

[2] Devo esclarecer que há inúmeras abordagens contemplativas da imagem (no cinema, no audiovisual, na fotografia, etc.) que engendram processos afetivos com êxito, inclusive fazendo uso da visualidade háptica para transmitir sensações táteis ao  espectador. Quando me refiro à reconexão com a dimensão carnal do sujeito, trato especificamente da inteligência proprioceptiva que é resgatada através da experiência direta e ativa do participante nas obras em questão, resultando em coreografias distintas das usuais, objeto de interesse deste ensaio.

***

 

*Foto de capa: Sofia Reis e Isadora Pacini.

 

Referências

Baitello, Norval. O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeiras e imagens. Ed. Unisinos, 2012.

Baitello, Norval. Existências penduradas: selfies, retratos e outros penduricalhos. Ed. Unisinos, 2019.

Forsythe, William. Choreographic Objects. Disponível em: williamforsythe.com

Rondeau, Louis-Philippe. Patenteux. Disponível em: patenteux.com/

Imagen principal: Liminal, Louis Philippe-Rondeau, 2018 (Imagem: Martin Tremblay)

Introdução 

Inicio este ensaio com uma confissão: creio que gostaria mais do exercício da escrita se este não exigisse minha permanência em um assento frente à tela. Percebo uma inquietação em meu corpo, uma agitação que o leva a dançar pela sala, passear pelas ruas, lavar a louça, enfim, qualquer atividade que não tenha a cadeira como molde da carne e o ecrã como alvo dos olhos. Não é minimamente estranho pensar na porção de tempo que passamos sentados e suspensos pelas telas ao longo de nossa existência? A partir de uma perspectiva coreográfica, a contemporaneidade e seus gadgets não estariam impondo determinadas posições, movimentações e sequências em nossa vida ordinária? Quais seriam os efeitos sofridos individual e coletivamente desta reprodução pré-formatada de ações no cotidiano? Estes objetos permitiriam a execução de outros gestos? Neste texto, busco tecer uma reflexão introdutória sobre a relação entre o corpo e os dispositivos de mediação imagética na era digital, apresentando algumas abordagens dentro do contexto da arte contemporânea que subvertem a coreografia vigente entre humanos e máquinas.

Nas últimas semanas, estive mergulhado em discussões (presenciais e remotas) e páginas (de papel e de pixels) que tratam deste desconforto pelo qual passo e de que provavelmente compartilho com muitas outras existências sentadas e suspensas. Estas expressões, tal como outras utilizadas na próxima seção, empresto do teórico da comunicação Norval Baitello Junior. Com mestres referenciais de peso (Dietmar Kamper, Harry Pross, Hans Belting, Vilém Flusser, Aby Warburg, etc.), Baitello se debruçou sobre as teorias da mídia a partir de um recorte corporificado, levando-o a escrever O Pensamento Sentado: Sobre Glúteos, Cadeiras e Imagens (2012) e sua continuação Existências Penduradas: Selfies, Retratos e Outros Penduricalhos (2019). Tais leituras compõem a base textual desta incipiente reflexão que brota de um incômodo sensorial de longa data.

A dança dos sentados e suspensos

Comecemos então pelos ecrãs, estas telas quadriláteras que medeiam a nossa comunicação. Poderíamos dizer, para início de conversa, que eles re-organizam a complexidade do mundo tridimensional em retângulos de duas dimensões: altura e comprimento. Subtrai-se a profundidade do espaço, resultando em um plano transfigurado da realidade, através do qual emitimos e recebemos mensagens, assim como realizamos toda a sorte de funções. Sedutoras iscas que capturam nossa mirada, os ecrãs nos transportam para outros mundos e, quando utilizados em altas doses, podem também vir a ser verdadeiras arapucas que nos aprisionam no âmbito virtual. Em frente aos notebooks, por exemplo, investimos horas a fio e temos a impressão de que realizamos uma porção de coisas, devido à intensa atividade mental, óptica e auditiva que são exigidas por tais experiências mediadas. No entanto, perceba: nosso corpo permanece em torpor durante essas operações, fragmentado nos quadris e nos joelhos, pontos estratégicos de nossa mobilidade. Os glúteos, músculos de sustentação da posição ereta, acabam por se atrofiar e se tornar inertes almofadas, reforçando a perda da escuta do corpo e de sua necessidade de movimento. Imóveis e sedados, perambulamos incessantemente no mundo imaterial que é aberto por essas janelas. Neste neonomadismo, habitamos um não-espaço, um vazio meio-de-campo e viramos voyeurs devoradores de imagens. Consumimos e, em alguma medida, tornamo-nos planos retangulares sem volume, peso, textura, cheiro ou sabor – e isto nos dói, pois somos matéria e desejamos ocupar o espaço, percorrer o campo em sua totalidade, com todos os sentidos e os riscos inerentes à experiência tangível.

Aplanado, o corpo contemporâneo segue sendo ressentido devido à relação desproporcional que tece com uma miríade de dispositivos. Como que conduzidas por um fio invisível, nossas cervicais são flexionadas para manusear os celulares, através dos quais usamos uma série de aplicativos gratuitos, porém com custos e prejuízos imensos ao nosso eixo vital. Sentados ou caminhando, permanecemos alienados em nossos gadgets, cabisbaixos e dessintonizados do entorno mais próximo, do espaço ao redor, de quem passa por nós e do que acontece em volta, aos lados, acima e atrás. “Vivemos em uma era em que a imagem tenta impor ao corpo seus parâmetros”, pontua Baitello (2012, p.91), e através desta imposição, nossas existências não só são aplanadas, como também suspensas ao reino rarefeito e sobre-humano das imagens. Neste domínio, impera um senso de idealidade eterna: enquanto os corpos são reais e imperfeitos, sujeitos à ação do tempo e da morte, as imagens se mantêm intactas. Com a popularização dos smartphones, equipados com câmeras de alta qualidade, surge outro gesto coreográfico popular: o fio invisível, desta vez, estende a cervical enquanto lançamos nossos telefones ao alto, acionando suas lentes para capturar nossa narcísica imagem em primeiro plano, instantaneamente pronta para ser exposta e orbitar por tantos outros ecrãs. Não à toa, distúrbios de autoimagem tiveram um aumento significativo junto à explosão das selfies, com seus filtros, falseamentos e remoções de quaisquer marcas indesejadas do reino da matéria. 

Maquinando outros gestos 

Retomando as questões introdutórias, volto a indagar: quais outros gestos coreográficos as tecnologias da imagem seriam capazes de fazer emergir? Encontro no terreno da arte contemporânea, especialmente no recorte das instalações interativas, um terreno fértil para abordagens subversivas com tais dispositivos. Trago neste ensaio três trabalhos que contam com câmeras, ecrãs e a participação do público, através da qual as obras são ativadas. São elas: Cidade de Abstratos (2001) do estadunidense William Forsythe, Liminal (2018) do canadense Louis-Philippe Rondeau e Castelo Neon (2022), meu trabalho autoral cujo segundo protótipo se encontra em fase de desenvolvimento. 

  • 1. William Forsythe – Cidade de Abstratos (2001)

Já que estamos utilizando aqui o termo “coreografia” a fim de explicitar as formas pelas quais as relações vetoriais entre corpos e dispositivos são organizadas no espaço, comecemos nossa breve análise por Forsythe, artista que introduziu o conceito de  “objetos coreográficos” e possibilitou a proliferação do pensamento coreográfico para além do domínio da dança. Segundo o artista norte-americano, os objetos coreográficos instigam processos experienciais no corpo que são capazes de fornecer, a quem se envolve com eles, uma consciência aguda de si mesmo, das respostas físicas e mentais geradas por nossas faculdades heuristicamente orientadas. Mas como isto se aplica quando os objetos coreográficos se resumem ao nosso recorte, isto é, as câmeras e os ecrãs? 

«Cidade de Abstratos», William Forsythe, 2001.

 

Cidade de Abstratos, obra criada há mais de vinte anos e exibida extensivamente em diversos países até o momento presente, é um trabalho de Forsythe que faz uso destes dispositivos como objetos coreográficos. Segundo ele, «por meio de tentativa e erro, os espectadores aprendem a se ativar para saber mais sobre seu papel na construção das imagens na tela. O resultado são coreografias inadvertidas, iniciadas por meio de investigação, não por intenção”. Tive o privilégio de experimentar de corpo presente esta obra na primeira exposição do artista no Brasil, realizada no SESC Pompéia (São Paulo) em 2019. Era fascinante perceber como as distorções espaciais e temporais apresentadas na grande tela tornavam-se mísseis altamente eficazes ao criarem um espírito de experimentação no público, o qual investigava autônoma e ativamente formas pelas quais seus movimentos corporais no espaço físico poderiam servir de inputs para outputs distintos e instigantes nos ecrãs. Repentinamente, a sala se encontrava repleta de corpos dançantes com gestualidades diversas, em especial se compararmos com os gestos que reproduzimos e avistamos com frequência nas telas cotidianas: sorrisos compulsórios, poses estereotipadas, dancinhas padronizadas, corações com os dedos, sinais de V, hang loose ou até mesmo mini hang loose (sim, chegamos neles).

  • 2. Louis Philippe-Rondeau – Liminal (2018)

Na obra Liminal, o canadense Louis Philippe-Rondeau utiliza um princípio similar ao de Forsythe, ainda que com suas particularidades. O artista, cuja investigação é centrada nas questões da pós-fotografia, desenvolve dispositivos que exploram a autorrepresentação de forma lúdica e não convencional, buscando revelar o corpo do público em suas obras instalativas sob uma luz diferenciada. Também tive o prazer de presenciar este trabalho na primeira edição da Nova Bienal Rio de Arte e Tecnologia, que ocorreu no Museu do Amanhã (Rio de Janeiro) em 2023. Segundo o texto curatorial da exposição, Liminal é uma instalação interativa que evoca a passagem inexorável do tempo. Ela busca materializar o limite entre presente e passado. Um arco de luz aparece na escuridão: é um portal temporal. Ao cruzarmos esse limiar, nosso reflexo projetado na parede adjacente parece distribuído no tempo graças à técnica de slit-scan aplicada. Nessa metáfora visual, vemos nossa própria imagem desvanecendo inexoravelmente”.

Inspirado na técnica fotográfica slit-scan do século XIX, Rondeau em Liminal, tal como Forsythe em Cidade de Abstratos, também faz uso da distorção como um recurso para engajar a participação ativa do público e criar novas formas dos participantes enxergarem a si mesmos enquanto se movem. As imagens dos participantes, captadas no arco e refletidas em perpétuo movimento no ecrã, acabam por ser uma representação da implacabilidade do tempo – tudo que é vivo desvanece. Como a todo momento a tela em branco é reconstituída (ou seja, a imagem dos corpos não permanece no ecrã por mais de alguns segundos), Rondeau desmantela o estatuto de idealidade eterna do reino da imagem. Este simples gesto, associado ao aspecto distorcido da técnica aplicada, permite que lidemos com nossa autorrepresentação de maneira mais leve e divertida, afinal, por que não se envolver despretensiosamente com o tempo brincante evocado pela obra se suas imagens refletidas sumiriam em instantes? Percebo essa questão presente quando fotografo práticas de dança livre, com teor essencialmente experimental: a câmera altera o campo, ora gerando um efeito inibidor quando algumas pessoas tomam consciência de que estão sendo observadas e capturadas, ora levando a produzir um gesto mascarado, hiperconsciente, que mais condiz com a lógica da aparência. Talvez fornecer ao participante a chance de sua imagem desaparecer das telas em poucos segundos seja um grande incentivo para emergir o gesto próprio da experiência.

«Liminal», Louis Philippe-Rondeau, 2018, ph. Martin Tremblay

 

  • 3. Lucas Saccon – Castelo Neon (2022)

Também inspirado na impermanência e em uma técnica que utilizo extensamente em meu trabalho fotográfico, a longa exposição, concebi minha primeira instalação interativa, Castelo Neon[1]. Um diferencial chave desta obra em comparação às anteriores é que seu míssil coreográfico não envolve a distorção da imagem corporal, mas sim seu total obscurecimento. Neste trabalho, a câmera capta a imagem do espaço expositivo em plena escuridão, impedindo o reconhecimento dos indivíduos ali presentes e, assim, criando uma atmosfera convidativa para experimentar o movimento corporal – estratégia antiga e utilizada em quaisquer pistas de dança. Em Castelo Neon #1, busquei criar uma ambiência propícia para o movimento emergir, obscurecendo aqueles que movem e iluminando o fenômeno do movimento isoladamente, façanha que pude levar a cabo através de duas táticas. A primeira consistia em fornecer um “pincel digital” ao público: em um painel de LED adjacente ao espaço da instalação, um QR Code direcionava o celular de cada participante para uma ferramenta virtual que permitia preencher a tela inteira do dispositivo com um matiz à sua escolha. A segunda estratégia se baseou em utilizar linguagem programacional para adulterar a imagem projetada nas três paredes, tornando visível o rastro cromático que era realizado pelo movimento dos celulares em tempo real. Assim, o público era capaz de pintar com seus próprios dispositivos o espaço em que se situava, fazendo emergir rabiscos evanescentes, aparecendo e desaparecendo continuamente.

“Castelo Neon #1”, Lucas Saccon, 2022. ph: Sofia Reis e Isadora Pacini

 

Nesta pintura coletiva, algumas instruções poéticas eram apresentadas no painel de LED adjacente ao espaço da instalação, convidando o público a explorar ludicamente diferentes qualidades de movimento que concernem às noções labanianas de espacialidade e temporalidade. Castelo Neon busca estabelecer um terreno democrático para a emergência de novos gestos coreográficos: quando os indivíduos desaparecem e somente os rastros luminosos são projetados, pouco importa se alguém gosta ou não de se enxergar, se é um dançarino profissional ou leigo; o que vigora neste trabalho é a possibilidade de experimentar o fenômeno do movimento inadvertidamente, sem espaço para autocensura, inflação de ego ou nível de performance. Ademais, Castelo Neon possui o intento de instaurar um espaço-tempo extraordinário, no qual não só é fornecida ao público a chance de experimentar as nuances da motricidade, como também de deixar se deslumbrar com a experiência estética das luzes, cores e formas projetadas sobre as paredes do espaço expositivo, amalgamadas ao som de trilhas imersíveis escolhidas a dedo. Na ativação do primeiro protótipo da obra, os celulares dos participantes criavam relações vetoriais extrínsecas no espaço físico, como se aquele fio invisível citado no início deste ensaio os conduzisse muito além do sobe-e-desce da coluna cervical, engendrando investigações corporais mais integrais e exploratórias. Embora com grande êxito, para o segundo protótipo da instalação a ser ativada ao fim de 2024, estou desenvolvendo formas de libertar ainda mais o movimento e iluminá-lo de outra maneira: Castelo Neon #2 talvez não permitirá o uso de celulares, porém contará com objetos luminosos vestíveis.

Conclusão

Vimos aqui três abordagens distintas que utilizam as tecnologias da imagem como objetos coreográficos, producentes de outros gestos, seja através de distorções, desvanescências ou desaparecimentos. Os três trabalhos instalativos instauram ambiências que são capazes de desfazer a coreografia estática do sentado, imposta pelas câmeras e ecrãs que nos rodeiam na vida ordinária, inclusive desmanchando os gestos estereotipados que geralmente se associam a estes dispositivos. Através da emergência de gestualidades autônomas em detrimento de ações mais padronizáveis, tais obras não deixam de gerar no público um senso de pertencimento, ao passo que os corpos se situam em um terreno comum de experimentação e são transfigurados nos ecrãs sob um mesmo efeito. Ainda que as telas nas instalações continuem a suspender nosso olhar, suas grandes dimensões permitem que tenhamos uma noção ampliada do espaço ao redor e de quem está inserido nele. Não se trata de uma coreografia humano-máquina solitária, tal como geralmente vivenciamos com os gadgets da contemporaneidade. Estes espaços híbridos são compartilhados entre pessoas, isto é, a relação de vetores neles organizada permite um encontro da ordem do presencial, abrindo brechas para coreografias coletivas em última instância. As imagens resultantes desses trabalhos obedecem, portanto, mais aos parâmetros de alteridade que muitas das imagens produzidas por nossos aparelhos individualizados e individualizantes. Apropriando-se dos artifícios somente viabilizados no domínio da imagem técnica, tais obras geram campos de ação e libertam gestos investigativos antes inexprimíveis, dando vazão a formas corporificadas de produção de conhecimento. Do âmbito digital, por fim, extrai-se sua potência analógica de retorno à carne[2].

 

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[i] A ativação do primeiro protótipo da obra se deu no evento Hiperorgânicos 10, realizado em novembro de 2022 na Inovateca (Parque Tecnológico da UFRJ) pelo grupo NANO (Núcleo de Arte e Novos Organismos da UFRJ) e seus coordenadores, Guto Nóbrega e Malu Fragoso. O segundo protótipo da obra está sendo desenvolvido com o intuito de ser apresentado em novembro de 2024.

[2] Devo esclarecer que há inúmeras abordagens contemplativas da imagem (no cinema, no audiovisual, na fotografia, etc.) que engendram processos afetivos com êxito, inclusive fazendo uso da visualidade háptica para transmitir sensações táteis ao  espectador. Quando me refiro à reconexão com a dimensão carnal do sujeito, trato especificamente da inteligência proprioceptiva que é resgatada através da experiência direta e ativa do participante nas obras em questão, resultando em coreografias distintas das usuais, objeto de interesse deste ensaio.

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*Foto de capa: Sofia Reis e Isadora Pacini.

 

Referências

Baitello, Norval. O pensamento sentado: sobre glúteos, cadeiras e imagens. Ed. Unisinos, 2012.

Baitello, Norval. Existências penduradas: selfies, retratos e outros penduricalhos. Ed. Unisinos, 2019.

Forsythe, William. Choreographic Objects. Disponível em: williamforsythe.com

Rondeau, Louis-Philippe. Patenteux. Disponível em: patenteux.com/

Imagen principal: Liminal, Louis Philippe-Rondeau, 2018 (Imagem: Martin Tremblay)

Acerca de:

Lucas Saccon

é fotógrafo, artista interdisciplinar e mestrando em Artes Visuais (EBA–UFRJ). Em sua investigação teórico-prática, pesquisa o fenômeno da percepção enquanto ação, propondo experiências corporificadas através das tecnologias da imagem. Ao utilizar câmeras, ecrãs e projeções como objetos coreográficos, intenta criar ambiências propícias para a emergência de novos gestos.

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