Campinas, março de 2023
Querida Maya,
Quando você fez Talley Beatty flutuar por 10 segundos em um grand-jeté – como se o tempo se alargasse, como se a gravidade fosse maleável – você não só deu à Dança uma sobrevida, mas indicou ao Cinema e à toda a Arte uma linha de força. Como quem nos relembra da potência do corpo, como quem nos relembra do sublime que reside no movimento e, sobretudo, como quem nos relembra que as invenções do “homem” e da ciência não nos engessarão, nos apropriaremos delas.
Acredite, quando você o fez saltar daquele modo, me lembrei de Méliès, de toda sua inventividade e dessa espécie de frescor que há no início da história de um meio. Na verdade, quando você fez Talley Beatty pousar daquele salto tão gigante como se fosse uma pluma, em 1945, você mostrou que todo momento é um início em potencial e que a potência humana é essa capacidade de criar, inventar, transformar… Como quem nos relembra do encanto. E de Aristóteles e sua poética. Você nos relembrou de tanta coisa…
Imagino que saiba que na Grécia Antiga, mulheres eram proibidas de participar dos debates públicos. É como se as proibissem de pensar. Mas pensavam. Hipátia de Alexandria, a primeira matemática da qual temos registros, lecionou matemática, astronomia e filosofia na escola platônica, a mesma que formou Aristóteles. E você, quando começou a fazer filmes, fora de sua terra natal, em meio a uma Guerra Mundial e em um campo, como o do Cinema, tão tomado por homens, nos relembrou que nós pensamos e nunca deixaremos de pensar.
Sabe, Maya, de certo modo, me identifico com você. Também sou sensível às questões do corpo e tenho apreço pelas imagens. E penso muito, até demais. É uma espécie de paixão curiosa, um desejo de escrutinar as possibilidades desse encontro; com o olho, com a palavra, com a poética e com o próprio corpo, inteira.
Assim como você, sou realizadora e montadora. Monto imagens porque acredito, primeiro de tudo, que elas possuam poder, e que é preciso nos apropriarmos delas antes que o contrário aconteça. Acredito também na criação de mundos dentro do mundo, de sensibilidades que emergem através da linguagem. Te tomo como inspiração porque seu modo de pensar e construir as imagens move coisas dentro de mim.
Em 1945, quando A Study in Choreography for Camera foi lançado, você disse pensar esse filme como uma amostra de “filme-dança”, você também disse que ele é muito curto devido a limitações financeiras e por isso você pôde apenas sugerir as potencialidades dessa forma – o “filme-dança”. Eu acho que te entendo, mas te garanto que o que pareceu pouco já foi coisa demais.
Você não chegou a ver, mas hoje não usamos mais película, salvo raras exceções. Em algum momento, a imagem foi transformada em dados discretos, agora ela é formada por pixels e não é mais a química, mas a matemática, que a revela para nós. O mundo se tornou digital e com isso, tudo mudou. As telas estão presentes em nossas vidas de um modo que você jamais imaginaria, mais junto ao corpo. Ver imagens em movimento é coisa corriqueira para boa parte do mundo.
Em 1945 você criou um estudo coreográfico para a câmera e em 2019 eu criei, com dois amigos, Murilo e Natália, dez estudos coreográficos para a câmera e pro espectador: 10 estudos para uma videodança interativa. Esse trabalho surge de uma curiosidade, uma pulsão, um desvio… Surge sobretudo de uma vontade. Vontade de, assim como você, sugerir uma forma. Em meio a tantas informações e possibilidades, num mundo de temporalidade tão acelerada, o vejo como uma espécie de ímpeto… daqueles que podem escapar caso você não o agarre rápido o bastante.
Agarramos o ímpeto, e ele se transformou em questão: Como criar uma videodança a partir de um mecanismo móvel, como o do vídeo interativo? Como criar uma narrativa em que você, pessoa criadora, não tem total controle? Esse processo foi, de alguma maneira, sobre abrir mão do resultado final, sobre sugerir uma forma e esperar que o espectador te acompanhe, sobre lançar o ímpeto e desejar que ele o agarre também, passando de espectador a interator.
Assim como você, Maya, enfrentamos a nossa questão a partir desse modo tão modesto que é o estudo. E a indagação era tanta que não bastou só um estudo, fizemos dez. Não que a curiosidade tenha acabado no décimo – sinceramente, poderíamos ir ad infinitum -, mas assim como você, tínhamos limitações. Achamos então que seria boa ideia usar o um e o zero, esses algarismos que ficaram tão em voga desde que o tal do digital dominou os meios de comunicação.
FRAMES DE 10 ESTUDOS PARA UMA VIDEODANÇA INTERATIVA, 2019, DE GRUPO TEIA
Caso não tenha ficado claro pra você, a questão da interatividade, nesse contexto digital e audiovisual, é regida pelo contato com a tela. Com um simples toque, o espectador muda o que acontece. No primeiro estudo, além de introduzirmos a possibilidade do toque em si, o usamos como tema: “toque ou não toque”, se você tocar, verá o resultado desse toque no corpo da dançarina, se não tocar, nada acontece – e isso é uma escolha também. Eu imagino o toque como uma espécie de mote do trabalho, um conector entre máquina-corpo-olho-alma. É ele que estimula o corpo e que deslancha o movimento – corpo que dança e corpo que vê.
Estudamos também os pontos de vista, as partes do corpo, a música, o lugar, o espaço, a quantidade, o comer, o bailarino, o reverso… Não vou me alongar falando sobre cada um deles, é um pouco complicado de explicar. Mas acho que já consegui dizer o principal: gosto como me sinto conectada com você por, 39 anos depois, levando seus filmes na cabeça e no coração, também ter sugerido uma forma.
Sabe, tem um filósofo que eu gosto muito, chamado Vilém Flusser, que, assim como você, era judeu e imigrou pra América fugindo da perseguição religiosa. Ele viveu o suficiente pra ver um pouco dessas mudanças todas que te contei, e acabou escrevendo muito sobre tecnologia. De forma sucinta, ele propõe a noção de “aparato”, algo que é programado para funcionar de uma determinada maneira e que carrega, além da dimensão instrumental, certas ideias de mundo. Ele diz que não deveríamos ser meros funcionários dessas máquinas. Tem algo a ver com aquilo que eu te disse sobre nos apropriarmos das imagens antes que elas se apropriem de nós, sabe? Temos que jogar. Conhecer o programa para poder subvertê-lo.
Flusser também se interessava pelos gestos e acho que vocês iam gostar de se conhecer. De qualquer forma, mesmo sem ter ouvido sobre Flusser e seus pensamentos, você jogou. Você jogou com a câmera fotográfica e com a linguagem estabelecida pelo Cinema até aquele momento. Acho isso admirável. Tem algo de extremamente poético em jogar, não acha? Jogar parte de um ímpeto, daqueles que se você agarra rápido o bastante despertam novas sensibilidades, criam mundos dentro do mundo. No fim das contas, acho que te escrevo pra te agradecer por isso.
Um forte abraço,
Lígia
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Referências bibliográficas:
DEREN, Maya. Choreography for the Camera. Dance Magazine , vol. 19, n. 10, outubro de 1945. Recuperado em: http://re-sources.uw.edu.pl/media/The-Study-in-Choreography-for-Camera-Maya-Deren.pdf.
FLUSSER, Vilém. Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume editora, 2011.
______. O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. São Paulo: Annablume editora, 2008.
Imagen principal: Frames de 10 estudos para uma videodança interativa, 2019, de grupo teia.