Entrevista com Rebeca Recuero Rebs
Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral.”
KRENAK, 2022, p.11.
A construção da história ocidental cisma em normatizar como o tempo funciona, todavia, ao estudarmos outras cosmogonias e culturas, percebemos que a relação com os tempos passado, presente e futuro não respeita a mesma norma que nós, os ocidentais, adotamos. Ailton Krenak, líder indígena, filósofo e uma das maiores vozes brasileiras contemporâneas analisa a passagem do tempo e a sua transcorrência a partir de seu olhar em sua publicação O Futuro é Ancestral. Para ele, se um amanhã há de ser cogitado, é importante termos a consciência de que os rios sempre estiveram aqui, no nosso passado e ao nosso redor.
Bem como a dança em sua intensa maneira de se modular com a passagem do tempo como apontado por Isabelle Launay ao usar o termo reenactment para se referir às relações da dança do presente com o passado. “Em suma, o reenactment perturba o sentido do que aconteceu no passado. Repensamos o que foi pensado, enquanto re-dançamos o que foi dançado, e esse retorno pode constituir um evento no presente.” (LAUNAY, 2019, p.26). Fragmentos do porvir de ontem, com boa dose de presente, proponho neste artigo a reflexão sobre as danças que permeiam a minha atenção: as danças na palma da mão[1]. Para dar cabo a esta investigação, apresento nesse artigo o estudo da pesquisadora Rebeca Recuero Rebs sobre o termo Social Network Dance (SND).
Ao longo dos momentos mais frágeis da pandemia da Covid-19 nos deparamos com longos períodos de navegação por meio de nossos dispositivos móveis como smartphones e tablets. Foram danças, “dancinhas” – como são popularmente chamadas as coreografias de redes sociais – e diversas formas de movência em espaços da tela em 9:16, 16:9, 4:5, como única maneira de fazer e difundir-se.
O formato tornou-se inclusive tema do Online Symposium International Journal of Screendance, realizado pela Universidade estadual de Ohio, em 2021. O tema: This Is Where We Dance Now: Covid-19 and the New and Next in Dance Onscreen trouxe à tona discussões sobre a internet sediar ambientes de danças. Em uma das mesas de discussão acompanhei online a palestra do professor Trevor Boffone[2], que dedica seus estudos a compreender as formas das quais a mídia social percebe a dança sob o espectro das questões de identidade, gênero. Na ocasião do simpósio mencionou sua publicação Renegades – Digital Dance Cultures from Dumbsmash to TikTok (2021), dedicada a reflexão dos fenômenos das danças nas redes sociais. Em sua fala e no livro, Boffone pontua.
Durante o início da pandemia de Covid-19 em março de 2020, como grande parte da população dos EUA estava em suas casas, o TikTok se tornou um lugar integral para entretenimento (…). De repente, as celebridades globais estavam usando a mesma tecnologia que os adolescentes em seus quartos. A principal diferença? No TikTok, os adolescentes comandam o show. (BOFFONE, 2021, p. 28, livre tradução da autora do inglês para português).
E de fato, as coreografias que “viralizam” nas redes sociais como TikTok destacam-se em sua maioria por coreografias realizadas e concebidas por jovens da Geração Z (nascidos entre 1995-2010). Ainda segundo Boffone, por mais que não haja números concretos divulgados, especialistas acreditam que cerca de 50% dos usuários da plataforma TikTok, têm entre 13 e 24 anos de idade. “Passe algum tempo com adolescentes hoje e você reconhecerá rapidamente o impacto do aplicativo.” (BOFFONE, 2021, p. 27). Importante enfatizar que TikTok é uma das plataformas do conglomerado chinês ByteDance e se define como principal destino para vídeo móvel no formato curto. Em 2021, TikTok foi o aplicativo mais baixado no mundo, com cerca de 1 bilhão de downloads em ambos os sistemas iOS e Android (EmizenTech/Tudo Celular, 2021).
No Brasil, Rebeca Recuero Rebs tem lançado o olhar para as coreografias que navegam no universo online das redes sociais. Rebs é pesquisadora e professora adjunta da Universidade Federal de Pelotas-UFPEL (Rio Grande do Sul-Brasil), e ancora-se no termo Social Network Dance (SND), em suas palavras, como parte de uma tentativa de conceituar/entender estas obras que surgem neste universo das redes sociais na internet e que envolvem, prioritariamente, a linguagem da dança, do audiovisual e das Plataformas de Redes Sociais (PRS).
Em entrevista realizada via e-mail, no dia 21 de abril, Rebs explana mais sobre esta investigação que congrega seu estudo ao encontro do meu sobre as danças na palma da mão. A seguir a entrevista na íntegra:
Como você chegou ao termo Social Network Dance?
Percebo que estas obras não são danças para a tela como a videodança, a cinedança, as animadanças etc., mas uma outra especificidade dela. Elas se encontram dentro da lógica de produção de conteúdo em rede, de colaboração, da interação e das dinâmicas sociais promovida nestes lugares do ciberespaço (como o TikTok, os Reels do Instagram, etc). Consequentemente, outros valores, outros propósitos e outras significações e sentidos são atribuídos a este formato híbrido, ampliando as possibilidades, os espaços e os modos de ser e fazer dança por meio das tecnologias.
Parti do termo social network sites (sites de redes sociais) atribuído por Boyd e Elisson (2007)[3] para definir estas plataformas que se constituem pela construção de um perfil público ou semipúblico, da construção e posterior visualização da rede social virtual e da possibilidade de interações, e adaptei/acrescentei “dance” para que continuasse atrelada à ideia destas plataformas, afinal, sem as PRS, não teríamos as SND.
Qual seu ponto de vista sobre as SND neste 2023 – pós-ápice da Pandemia? Pergunta especialmente direcionada às plataformas TikTok e Reels (Instagram).
Acredito que ocorreu uma potencialização das SND pelo próprio contexto em que estávamos inseridos na Pandemia. Ou seja, as pessoas estavam em distanciamento social, cercadas em suas casas e buscavam interações sociais. As PRS, neste contexto, possibilitaram com que pudéssemos interagir, trocar capital social, formar e manter nossos laços com a mediação da internet. Com a pandemia esse uso foi intensificado. Ou seja, a internet foi uma “salvação” para que não ficássemos totalmente sozinhos durante esta pandemia e seu uso intensificado, otimizou diversas criações, obras e práticas sociais.
Porém, penso ser indispensável percebermos que outros dois fatores andaram juntos para pensarmos as SND: as possibilidades oferecidas pelas plataformas e a apropriação social que deriva do que as pessoas fazem e criam a partir (e com) estas ferramentas. As pessoas tinham o espaço virtual, tinham as ferramentas e tinham a pandemia. Assim, elas agiram, criando conteúdo, ressignificando e atribuindo novos usos e sentidos para estes espaços virtuais e sociais que vão caracterizar as SND. O convite para a participação de desafios, a busca por valores sociais como a visibilidade, a popularidade, a reputação, a construção de autoridade etc. estimularam as pessoas a criarem conteúdo nestes lugares virtuais, promovendo dinâmicas que caracterizarão o uso destes aplicativos, como o TikTok e os Reels.
Penso então, que a pandemia não foi determinante para o surgimento das SND, mas sim, foi uma potencializadora do seu surgimento, bem como de sua disseminação e incorporação nas práticas sociais no ciberespaço.
Você acha que as SND são uma linguagem de dança ou apenas uma forma de complementar o trabalho dos artistas da dança?
Acredito que as SND sejam mais uma possibilidade de lugar para a linguagem da dança e, a partir desta “descoberta”, também entendida como um espaço de possibilidades para complementar não apenas o trabalho de artistas, mas de produzir inúmeros outros sentidos que são incorporados na nossa sociedade, na nossa cultura e nos nossos modos de fazer e significar a Dança.
Perceba que nossas atividades (sejam elas sociais, profissionais, de entretenimento, etc.) já têm migrado e acontecido no ciberespaço há algum tempo. Não foi diferente com a Dança. O ponto é que – especificamente nestes lugares das PRS – a Dança entra em outra lógica, não servindo apenas para o entretenimento, para a construção e a exibição de obras artísticas, como espaço fruição, de performance e de manifestação e crítica social, mas também como espaço fundamentalmente de interação social e troca de valores potencialmente buscados na sociedade digital.
Vejo pessoas criticando as SND como forma possível de produção artística ou mesmo como sendo obras supérfluas, capazes de desvalorizar o trabalho de alguns profissionais ou mesmo dar visibilidade para produções sem critérios, banais, sem “técnicas” ou inferiores a outros tipos de produções culturais, estéticas e/ou artísticas que se dão fora das PRS (em comparação com outros territórios concretos na qual a Dança ocorre, por exemplo). Porém, o meu foco de interesse e discussão vai para outro ponto. Acredito que nestes lugares, temos outras especificidades que potencializam e ressignificam essas obras, fazendo com que elas encontrem outros modos de manifestação e significação características da sociedade atual, ou seja, a dança entra com seus elementos de linguagem para produzir experiências estéticas e construir amizades, estimular a cooperação, a competição, a construção de obras coletivas hipertextuais, abertas e sem uma lógicas hierárquica clara em sua forma de criação e produção, bem como na distinção entre artistas, produtores e público.
As SND entram como objeto de estudo da área da Dança, da Comunicação, do Audiovisual, da Cibercultura, etc. É um fenômeno de interesses híbridos e coletivos que é caracterizado pelo movimento atual de interações e trocas entre pessoas dessa geração conectada. Por esse motivo, além de poder complementar o trabalho de artistas (dar visibilidade, aproximar o artista do público, horizontalizar essa comunicação etc.), as SND apontam para um movimento cultural e estético que é incorporado nessa sociedade da cibercultura. Assim, penso que as experiências estéticas são inúmeras, assim como também é possível a produção de obras artísticas advindas das SND.
Futuros ancestrais – Danças virtuais
Através do deslumbre sobre a temporalidade da natureza que nos arrebata, dos rios que criam seus afluentes sob a premissa de retornar a sua nascente sempre que necessário. Seria no fluxo da virtualidade, um meio de fazer/existir/coexistir/ser dança a seu próprio tempo? E se as SDN forem o espaço de possibilidades e conexões com o tempo ancestral? Uma maneira de ser palco, a ser ainda (mais) desbravado por nossas mentes e corpos de dança, sob o reenactment (LAUNAY, 2019), numa contradança de bailarinas, bailarinos, bailarines e plateias globais. Cabe-nos nesta margem de caudaloso rio navegar, apreciar, mergulhar e vivenciá-lo cada vez mais conectados desde sua nascente até o presente ao nosso redor.
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Referências:
BOFFONE, Trevor. Renegades: Digital Dance Cultures fron Dumbsmash to TikTok. Nova York, EUA: Oxford University Press, 2021, p. 27-28.
KRENAK, Aílton. O Futuro é Ancestral. São Paulo-SP, Brasil: Companhia das Letras, 2022, p.11.
LAUNAY, Isabelle. As Danças de Depois. São Paulo-SP, Brasil: Revista Aspas ppgac-USP V.9 n.1, 2019. Disponível: https://www.revistas.usp.br/aspas/article/view/159042 Acesso: 25 de abril de 2023
OHIO, University. Symposium This is Where We Dance Now Covid-19 and the New and Next in Dance Onscreen Online symposium and special issue of the International Journal of Screendance. Ohio, EUA: 2021. Disponível: https://screendancejournal.org/index.php/screendance/issue/view/279
Acesso: 25 de abril de 2023
REBS, R. Rebeca. Social network dance: entendendo a dança em plataformas de redes sociais. In: DUARTE, Gustavo, CASTRO, Daniela, PALUDO, Luciana. Dança no RS – Memórias e Perspectivas. Santa Maria-RS, Brasil: Arco Editores, 2022, p. 158-173.
BYTEDANCE. In: TikTok. Disponível em: https://www.bytedance.com/en/ Acesso: 24 de abril de 2023
CELULAR, Tudo. Top 10: veja quais foram os aplicativos mais baixados em 2021 no Android e iOS. São Paulo-SP, Brasil: 2021. Disponível: https://www.tudocelular.com/google/noticias/n184161/top-10-aplicativos-mais-baixados-2021-android-ios.html Acesso: 24 de abril de 2023
[1] Dança na Palma da Mão – Termo cunhado por mim para referir às danças produzidas e difundidas por meio das redes sociais. Tema da atual monografia sendo desenvolvida pela Unicamp, sob orientação da Profa. Dra. Cássia Navas.
[2] Trevor Boffone é professor, escritor e produtor baseado em Houston-Texas. É palestrante no Programa de Estudos de Mulheres, Gênero e Sexualidade da Universidade de Houston e professor de espanhol na Bellaire High School. Disponível em: https://trevorboffone.com/about/ Acesso em: 30 de abr de 2023.
[3] Disponível em: Social Network Sites: Definition, History, and Scholarship – boyd – 2007 – Journal of Computer-Mediated Communication – Wiley Online Library
Foto principal: Rebeca Recuero Rebs (entrevistada)