LOÏE. 11

Por uma dramaturgia dos CorposImagem em movimento na Dança Digital: agradeçamos a Loïe Fuller

24 de noviembre de 2022
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Apontamos, neste artigo, um conjunto de pressupostos de nossas investigações, apresentadas em diversos eventos como o Congresso Internacional de Intermidialidade (2015) e ARTECH (2019, 2021), e estamos interessadas em dar continuidade às ideias levantadas sobre os constituintes de uma nova dramaturgia, a dramaturgia dos CorposImagem em movimento na Dança Digital.

Ao campo expandido da Dança com as tecnologias digitais, nós do Elétrico – Grupo de Pesquisa em Ciberdança, nomeamos, desde 2015, como Dança Digital, atualizando assim o conceito de mediadance (Schiller, 2003 e Bastos, 2013 e 2015). Assumimos o termo Dança Digital como a nomenclatura que nos possibilita ampliar a concepção inicial sobre Dança e nos aproximar da atual condição junto às tecnologias digitais, o que ainda se apresenta como uma fase recente para esta arte. Entretanto, não deixamos de desconsiderar que outros termos também foram cunhados para compreender os processos que resultaram nos híbridos entre dança e tecnologia.

Partimos do entendimento que a techné tanto se aplica às diversas técnicas de dança que o corpo comporta, como ao fazer coreográfico, já que os coreógrafos se utilizam de um conjunto de regras e procedimentos com a finalidade de produzir algo específico, essencialmente de criar danças.

O corpo, este complexo e hierarquizado sistema, não pode ser dissociado da Dança, se considerarmos que, contemporaneamente, as novas tecnologias têm redimensionado a técnica da dança e o conceito do corpo que dança, criando novas configurações, conceituações e simbologias. O corpo é invadido, ampliado, redimensionado e atravessado pela tecnologia.

Da mesma forma, apenas conceituar Dança como techné já não é suficiente. Definir Dança implica em considerarmos o contexto histórico e cultural em que ela esteja inserida, revelar óticas particulares, descrever uma arte simbólica, específica. Em toda a historiografia da Dança, alguns coreógrafos, criadores e filósofos desta linguagem tentaram elaborar definições, embasados em suas próprias experiências e seus próprios olhares.

Precisamente, registramos aqui que se trata de um equívoco conceitual definir a Dança como essencialmente a linguagem do movimento, numa visão reducionista e não compreendendo que, cada vez mais, a Dança extrapola seus domínios territoriais já assegurados para alcançar novos territórios e, principalmente, nos interessa debruçarmos sobre os domínios digitais do século XXI.

Nos séculos XX e XXI, é evidente a relação de afinidade que a Dança e o Corpo possuem com a imagem e com o uso de novos suportes artísticos, mediáticos e comunicacionais para se constituir. Suportes estes que vão se atualizando conforme a invenção de novos protocolos de tecnologia digital.

No campo da dança, o termo mediadance, cunhado por Gretchen Schiller (2003) e revisitado por Dorotea Bastos (2013), representa uma categoria ainda recente na história da dança e da tecnologia e é nosso ponto de partida para o nosso conceito de Dança Digital. Segundo Schiller, a mediadance diz respeito aos trabalhos de dança e tecnologia, artes interativas ou cinedança, o que dialoga com os estudos da visionária Allegra Snyder (1967), sobre dança e cinema.

Cabe ressaltar o caráter híbrido desse tipo de produção artística, em que as fronteiras entre diferentes formatos e possibilidades são tênues ou totalmente embaçadas, o que corresponde, também, a um pensamento contemporâneo sobre a produção em Dança no campo da Arte Digital, apresentando uma Dança que descobre na tecnologia um caminho para novas experiências estéticas e poéticas, na Contemporaneidade. Neste âmbito, a hibridação é o destino do corpo: “um resultado tanto das exigências da criação coreográfica, como da elaboração de sua própria formação” (Louppe, 2000).

«Füller Mirror Loocking» (2011) de Ana Carolina Frinhani

 

A ideia de expansão nas artes encontra seus primeiros aportes teóricos com Gene Youngblood e Rosalind Kauss, ambos na década de 1970. Youngblood (1970) teria sido um dos primeiros a fazer referência ao pensamento convergente, ideia presente em seu livro Expanded Cinema, em que analisa a ampliação do campo cinematográfico a partir da introdução de novas tecnologias, o que promove, ao mesmo tempo, uma expansão da consciência.Correlacionado a esse entendimento, encontra-se o conceito de campo expandido, proposto por Rosalind Krauss. A formulação desse conceito surge a partir do seu artigo “Sculpture in theExpanded Field”, de 1979, no qual a autora sugere uma nova abordagem a respeito da escultura – reflexão que pode ser ampliada para as artes em geral, entendendo o campo expandido como uma ampliação das possibilidades da arte a partir da introdução de novas tecnologias. Apesar de escultura e dança serem diferentes linguagens artísticas, a proposta de Krauss pode extrapolar os terrenos iniciais e ser aplicada à dança, uma adaptação realizada por Dorotea Bastos (2013), ultrapassando a concepção tradicional da dança, cujo conceito, percorrendo diferentes estágios, foi modificado e ampliado, resultando no que propomos posteriormente como Dança Digital.

Para entendermos como esta expansão chega à Dança Digital, é necessário ultrapassar a concepção inicial da Dança, tradicionalmente vista como uma representação (exemplos mais comuns podem ser encontrados nos repertórios do balé clássico, nos quais os bailarinos representam os personagens das histórias: camponeses, princesas, animais, entre outros), e era considerado Dança, tudo aquilo que fazia parte da lógica do movimento (Bastos, 2013).

Ressalta-se que o processo de expansão ou ampliação de uma categoria não exclui as formas anteriores, ou seja, a Dança Digital é uma forma de dança que atualiza a própria Dança em questão, aumentando o alcance e diminuindo as demarcações que limitam a categoria.

Com o campo expandido aplicado à dança, há o surgimento de novas possibilidades lógicas e novos territórios a partir do encontro e da complexificação dos elementos que formam o esquema. Bastos (2013) propõe que a adaptação do campo expandido a partir de Krauss permite suspender a categoria da Dança e tem a intenção de desestabilizar o que está posto, a fim de se descobrir novos terrenos possíveis de ocupação, sendo – assim como o fora com Krauss – também uma questão política para a Dança.

Para nós, esta atualização necessária de conceitos, tratando a Dança Digital como campo expandido da Dança, é uma proposta de novos olhares e novos territórios para uma prática que, além de complexificar a própria dança, reconfigura o campo de atuação e promove uma ampliação de possibilidades nesse espaço entre a dança e as tecnologias.

O corpoimagem e sua dramaturgia

Ao conhecermos o conceito de imagem-movimento de Deleuze (2004), consideramos sua aplicabilidade no campo da Dança, por um argumento bem evidente, pois a Dança em sua especificidade e com a ampliação do seu conceito, é a Arte dos Corpos, e mais precisamente o que gostaríamos de defender aqui é que ela seja compreendida como a Arte dos corposimagem em movimento. Assim que, aproveitamos do conceito de Deleuze e estamos situando o corpo que dança nesse contexto contemporâneo, no qual as imagens reinam como absolutas, e nos auxiliam a construir nossas narrativas diárias e cotidianas, substancialmente dando terreno para a elaboração de narrativas que abraçam o ser/estar na Contemporaneidade. Para construir seus enunciados, Deleuze, em seu livro Imagem-Movimento, em 1983, se apropria das teses desenvolvidas em Matière et Mémoire de Henri Bergson (2004), sendo que o mais interessante em Deleuze para as nossas pesquisas é o conceito de imagem-movimento aplicado no campo do Cinema, para nos apropriarmos dele e contextualizarmos o mesmo no campo da Dança.

Para nós, interessam alguns apontamentos de Deleuze (2004), a partir de Bergson, que afirma que o espaço percorrido é passado e o movimento é presente, sendo que o espaço percorrido é possível de ser dividido. Já o movimento em si é indivisível, ou pelo menos não se divide sem mudar de natureza a cada divisão acontecida. Também importante nessa tese é saber que não se pode reconstituir o movimento através de posições no espaço, ou de instantes no tempo. Logo, temos uma definição de movimento que nos interessa: por mais infinitamente que se tente aproximar dois instantes, ou duas posições, o movimento se fará sempre num intervalo entre os dois, logo, às nossas costas, tendo sua própria duração qualitativa.

«Exu Ionan» (2018) de Ana Carolina Frinhani

Assim,afirmamos que a Dança se constitui nesse intervalo entre dois momentos, entre dois instantes, surgindo justamente nos intervalos de espaço que percorre, constituindo-se a Coreografia numa arte da grafia do movimento no espaço entre momentos.

O estágio do corpoimagem na Dança refere-se a um contexto atualizado no qual as imagens são evidenciadas, substancialmente, dando terreno para a elaboração de narrativas que abraçam o ser/estar na Contemporaneidade e que em última instância nos auxiliam a construir essa dramaturgia, que em sentido amplo, diz respeito à “técnica (ou a poética) da arte dramática, que procura estabelecer os princípios de construção da obra” (Pavis, 2005).

Segundo José Sánchez (2002), é possível constatar que a dramaturgia, como um modelo de representação, perdeu sua validade quando, a partir do século XIX, novas propostas surgiram por estudiosos e artistas da vanguarda, ganhando outros contornos a partir de pesquisas como as do dramaturgo alemão Bertold Brecht, que, no século XX, desenvolve o conceito de teatro épico, que ampliou o próprio conceito de dramaturgia. Essas novas propostas sugerem novos modelos, em que as fronteiras entre espaço, cena e elementos visuais não são tão delimitadas como, a princípio, propunha-se. Trata-se, assim, de um processo de expansão, também, da própria ideia de dramaturgia que, segundo nosso ponto de vista, e no âmbito da Dança Digital, refere-se à criação de novas relações de sentido entre os corposimagem e o movimento.

Consideramos que, desde quando os nossos antepassados pré-históricos desenhavam a imagem dos seus corpos dançando nas paredes da caverna, já tínhamos ali a evidência dos corposimagem da Dança, e, ao longo da historiografia dos corpos que dançam, podemos registrar que esses corpos sempre se utilizaram de recursos tecnológicos para constituir suas dramaturgias como iluminação, cenografia, figurino, sonoplastia, para criar a visualidade para a cena coreográfica. Ou seja, a Dança sempre se configurou através dos seus inúmeros corposimagem, quer seja ocupando teatros italianos, teatros de arena, praças públicas, quer seja mais recentemente ocupando nossos computadores, smartphones e nos sites de compartilhamento de conteúdos imagéticos, como Instagram e Facebook, ou através de videodanças, instalações interativas e outras formas de expressão; e, em última instância, podemos evidenciar que essas atualizações de contexto e de tecnologias cotidianas também implicam em gestar uma nova dramaturgia, a dramaturgia do corpoimagem.

A dramaturgia do corpoimagem é uma forma de virtualização (Lévy, 1996) da dramaturgia tradicional, uma vez que cria novas possibilidades de atualização desse conceito, bem como se utiliza de novos componentes técnicos para tornar essa arte uma arte essencialmente visual, imagética, na qual o público se torna usuário, assiste mas sobretudo interage com a forma cênica, o que nos faz refletir sobre como o uso desses novos aparatos estão conseguindo fazer com que outros sentidos sejam convidados para a experiência estética da Dança.

Afirmamos que a Dança tradicionalmente foi confeccionada para ser vista e propomos atualizá-la como uma arte visual, a arte dos corposimagem em movimento. Nessa linha de coerência, podemos considerar, contemporaneamente, o movimento como um componente visual da Dança, talvez o principal, mas não o único: a luz, os cenários, os próprios corpos que dançam, as projeções do vídeo e tantas outras possibilidades são também elementos visuais da dança e contribuem para uma dramaturgia específica que, em nossa proposta, se reconfigura com e no corpo, transformando o movimento da Dança em corpoimagem em movimento.

Já quanto à tecnologia digital disponível para a construção do corpoimagem em movimento, podemos refletir que a função de um coreógrafo se mantém na essência de buscar construir suas próprias poéticas e linguagens coreográficas, mas o que o distingue nesse momento contemporâneo são as ferramentas disponíveis que usam para constituir suas coreografias e compor suas narrativas.

Essa relação acontece no e com o corpo que, entre-imagens, se torna presente em potência nos diversos ambientes virtuais, o qual desconhece as limitações do corpo orgânico, proporcionando uma nova forma de experienciar a Dança, reinventando e multiplicando possibilidades de criação e fruição artísticas entre os dispositivos técnicos e o corpo. Esta acepção dialoga com a ideia de dramaturgia da imaginação, de José Sanchez (2007), o que aqui consideramos uma atualização ao conceito de dramaturgia da imagem proposto pelo próprio autor. Ao abordar a imaginação, Sanchez explora o ato teatral e expande a concepção de dramaturgia para além da perspectiva meramente tecnicista, englobando critérios de subjetividade e criação a partir das experiências, que se consuma numa tradução de prática artística, inclusive, a partir de corpos intangíveis e com o que o autor denomina de geração de temporalidades alternativas.

Para nós, este conceito de dramaturgia da imaginação remete à ideia de cinema expandido de Youngblood (1970), já apresentado neste artigo, por se referir a um processo de passagem a uma consciência expandida e não apenas uma ampliação de ordem técnica, o que também acontece com a Dança do corpoimagem, que se constitui por proporcionar uma experiência que ultrapassa a efemeridade física e limitante, oferecendo uma experiência de expansão de nossas consciências.

«Virtual Dance Füller» (2010) de Ana Carolina Frinhani

Considerações

Vamos estabelecer assim que, desde seu fundamento inicial, a Dança se constitui como uma cena visual, seja registrando-a nas paredes das cavernas, seja em sua continuidade nas notações coreográficas, seja na sua execução cênica em diferentes tipos de teatros, nos trabalhos da pioneiras Loïe Fuller e Maya Deren, ou em suas possibilidades de configuração digital; mas essa cena visual não é meramente um novo aparato tecnológico digital e sim uma tecnologia de expansão de nossas consciências; não é meramente um novo fazer com novas ferramentas digitais, e sim um novo devir de nossas consciências ampliadas incessantemente, diariamente, cotidianamente.Propomos que esse novo estágio da dramaturgia do corpoimagem em movimento seja uma dramaturgia da imaginação como Sanchez nos oferece, e que a cada experiência estética da Dança se acrescente uma nova camada com a qual possamos expandir nossas consciências de ser-estar no mundo contemporâneo. Essa nova dramaturgia, segundo Bastos (2015),também se constitui essencialmente como uma dramaturgia da ação que, considerando ação como fator que impulsiona a máquina do drama, tudo aquilo que muda a situação, produzindo, portanto, movimento” (Pallottini, 1989), uma dramaturgia que se constitui em narrativas a partir dos corposimagem em movimento e que se configuram como unidades de composição dramatúrgica, o que nos leva ao último estágio da ampliação de nossas consciências. Se a Dança mantém sua natureza e especificidade e se hibridiza contemporaneamente com o digital, com o ciberespaço das tecnologias digitais, na Dança Digital, a dramaturgia se apresenta no processo de expansão entre as danças e as tecnologias que, para além da mera execução tecnicista, apresenta aspectos relacionados à estética e às poéticas, gerando e sendo resultado de relações que compõem a tessitura da cena a partir dos corposimagem em movimento.

 

Referências

Bastos, D. (2013). Mediadance: campo expandido entre a dança e as tecnologias digitais. Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de Salvador, Salvador, BA, Brasil.

Bastos, D. (2015). Dramaturgia expandida: processo de significação das imagens em movimento. Anais do 1º Congresso Internacional de Intermidialidade 2014. BlucherArtsProceedings, v.1 n.1. São Paulo:Blucher.

Bergson, H. (2004). Matière et Mémoire. Puf, Paris, França.

Deleuze, G. (2004). Cinema I – a Imagem-Movimento. Assírio & Alvim: Lisboa.

Krauss, R. (1979). Sculpture in the Expanded Field, 8, 30-44.

Lévy, P. (1996). O que é o virtual? Editora 34.

Louppe, L. (2000). Corpos híbridos. In Pereira, R., & Soter, S. (Org.). Lições de Dança 2. Rio de Janeiro: Editora UniverCidade..

Pallottini, R. (1989). Dramaturgia – A construção do personagem. São Paulo: Editora Ática.

Pavis, P. (2005). Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva.

Pimentel, L. C. M. (2008). El cuerpo híbrido en la danza: transformaciones en el lenguaje coreográfico a partir de las tecnologias digitales. Análisis teórico y propuestas experimentales. Tese de Doutorado. Universidade Politécnica de Valencia, Espanha.

Pimentel, L., & Bittencourt, A. (2019) The ImageBody of (Digital) Dance: First Steps For Dancing with Deleuze. Proceedings ARTECH 2019. Braga, Portugal.

Sánchez, J (2007). De las dramaturgias de la imagen a las dramaturgias de la imaginación. Quaderns de l’Institut de Teatre, Barcelona l’Institut de Teatre, n. 32.

Sánchez, J. (2002). Dramaturgias de laimagen (3ª edição). Cuenca: Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha.

Schiller, G. (2003). The Kinesfield: a study of movement-based interactive and choreographic art. Tese de Doutorado, University of Plymouth, Plymouth, England.

Snyder, A. F. (1967). Untitled Article on the filmic approach to dance. Dance Perspective, 30, 48-51.

Youngblood, G. (1970). Expanded cinema. New York: E. P. Dutton & Co, Inc.

 

*Imagen principal: «La Loie» (2010) de Ana Carolina Frinhani

Acerca de:

Ludmila M. Pimentel

Escola de Dança, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil, ludmilapimentel@hotmail.com

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Acerca de:

Dorotea S. Bastos

Centro de Artes, Humanidades e Letras, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Brasil, doroteabastos@gmail.com

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