LOÏE. 08

A dança dos corpos interditados

2 de April de 2021
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“Deixe-me tomá-lo pela mão. É um gesto supremamente humano; nele, você e eu estamos unidos: nós seguramos um ao outro e seguimos juntos”[1]: este delicado pedido abre um ensaio de um pensador que, ao olhar o mundo, não cansa de ver linhas. É como um antropólogo ocupado com a história e a vida das linhas que Tim Ingold[2] evoca o gesto: os dedos que se enlaçam são a imagem de um acontecimento que funda um mundo comum no qual cada vivo – cada dimensão do vivo, aliás – faz-se linha. Quase à maneira do simplificado desenho infantil, que traça corpos em figuras-bastão, somos feitos por linhas que continuamente se estendem, laçam e entrelaçam outras linhas: num mundo assim concebido, “que continuamente ganha existência por meio de processos de crescimento e movimento – isto é, num mundo de vida –, laçar nós é o princípio fundamental de consistência”.[3] A vida pressupõe que linhas se enlacem e se emaranhem. Em nossas mãos dadas – como, ademais, em nossos abraços –, nas tensões e contra-tensões dos nós que laçamos, às vezes fugazes, às vezes longevos, nossos corpos-linha entretecem vida e comunidade.

No poema A viagem de Eduardo Galeano, lemos que:

Oriol Vall, / Que cuida de recém-nascidos / Em um hospital em Barcelona, / Diz que o primeiro gesto humano é o abraço. / Depois de chegar ao mundo, / Nos primeiros dias, / Os bebês manoteiam / Como se buscassem alguém.

Outros médicos, / Que se ocupam dos já vividos, / Dizem que os velhos, / Ao fim de seus dias, / Morrem querendo alçar os braços.

Hilda welcomed- @Stanley Spencer

 

Como parte do ritual fúnebre dos Kuikuro, povo indígena do Alto Xingu, o morto é pintado, adornado e abraçado antes de seguir para o outro mundo. Na pandemia, não mais. Na pandemia, os corpos são interditados e já não se aproximam sem a dimensão do medo. O contágio é uma iminência. O contato passa a ser “ocasião de morte possível, e todo o encontro, um mau encontro”[4]. A esfera dos nossos movimentos não deve penetrar a do outro: já não podemos, como antes, habitar e dançar o espaço comum, pois protocolos sanitários impõem outros trânsitos no espaço. Somos ensinados a tornar nossos gestos barreira; nossos cumprimentos não nos enlaçam, reduzidos que estão, quando tanto, ao toque anguloso, retraído e ósseo de cotovelos ou de falanges de mãos fechadas; a distância do afastamento que devemos metrificar quanto ao outro é a dos nossos braços abertos e estendidos, porém vazios e intocados. Num tempo que se tem repetidamente reconhecido como distópico, dar as mãos e abraçar são nossa utopia de proximidade.

O trânsito dos corpos no espaço compreende uma dimensão coreográfica. Numa concepção expandida, a coreografia trata de “[…] organizar corpos no espaço, ou organizar corpos com outros corpos, ou um corpo com outros corpos num meio que é organizado”[5], diz William Forsythe. Na entrada de uma de suas instalações coreográficas – Abstand, de 2005 –, lia-se a instrução: “Favor manter a distância de 1 metro da parede e dos outros visitantes”. Na pandemia, o trânsito dos corpos atende a uma instrução coreográfica correlata, porém definida e imposta por parâmetros do assim chamado “distanciamento social”: os percursos da nossa coabitação cotidiana desde aí instituídos têm desvios e esperas, às vezes constrangidas, de evitamento; testemunhamos imagens inéditas: em julho de 2020, a habitual multidão de muçulmanos circundando a Caaba, na peregrinação anual a Meca, já não se repetiu; na pandemia, círculos ordenadamente concêntricos foram tracejados pelos corpos dos caminhantes. Antes, em abril, milhares de manifestantes ocuparam a Praça Yitzhak Rabin, em Tel Aviv, num protesto feito por corpos equidistados em 2 metros. Admirável e justificável, a imagem é quase um oxímoro espacial: a força incontida de uma indignação que leva às ruas se configura, contida e regulada, em filas. (Mas, em junho e também depois, pelo mundo, feliz e infelizmente, as configurações coreográficas foram outras. Em desobediência civil e num levante por outras grandes emergências que desde sempre deveriam importar, elas já não puderam se fazer e conter em parâmetros sanitários.)

Estranhamente, ainda há pouco, repetíamos contra um crescente e encarnado fascismo entre nós: “Ninguém solta a mão de ninguém.” Sabemos dos incontáveis matizes de sofisticação do tato, dos incontáveis sentidos que emergem das mãos que se dão: cada pequena nuance de intensidade, cada conformação do tocamento, cada variedade de textura, de temperatura ou de tônus pode instaurar relações muito diversas (e que incluem mesmo as opressões, das quais se torna necessário, justamente, emancipar-se). Mãos podem ser dadas a serviço de projetos estéticos e políticos muito distintos. Mas a mão dada que então se evocava se queria tão-somente um signo de solidariedade, de atenção recíproca, de cuidado mútuo. Pois sabíamos e sabemos que este fascismo entre nós que grita anacrônico contra o comunismo quer, de fato, atentar contra tudo aquilo que é comum, comunal, comunitário, contra tudo aquilo que faz comunidade.

“Ninguém solta a mão de ninguém.” Uma das belezas de tal signo se liga à sua dimensão ética “profundamente corporal”: “Não se trata de ‘ninguém esquece ninguém’ e nem mesmo de ‘ninguém deixa de pensar na vida de ninguém’. Convida o corpo à ação e ao encontro. Convida à contaminação com o suor que o contato ininterrupto com outra mão produz. Seu acerto, penso eu, consiste justamente na mobilização corporal e não simplesmente racional”, escrevia Helena Vieira[6], num tempo em que ainda era possível reivindicar, sem medo, o gesto e sua “contaminação” pelo contato das peles como um bom encontro.

Ningue_m solta a ma_o de ningue_m- @Thereza Nardelli

 

Nossas danças a dois – cênicas ou não – são inumeráveis; cada uma configura uma breve e mínima comunidade. Mas nossas danças se fazem também a três, a quatro, a muitos. Nossas cirandas o testemunham: a mera disposição dos corpos, ainda imóveis, em círculo, já tende a insinuar uma experiência comunal; a experiência é intensificada quando mãos dadas os unem. As danças que se desdobram daí a prolongam: as partilhas, por cada corpo, do ritmo, da respiração e do passo entretecido, nos comunam; são muitas as danças que frequentamos da infância à vida mais adulta e festiva que repetem esta experiência tão própria à topologia do círculo. Outras dinâmicas – variadas por cada corpo – podem mesmo emergir, modulando as intensidades, produzindo desequilíbrios, desviando percursos, instabilizando a configuração e tensionando a socialidade dada. Os corpos podem aí se contorcer, perder o ritmo, se desequilibrar; as mãos podem mesmo momentaneamente soltar-se, mas algo aí insiste como uma experiência comum e comunal, como força vital. “A gente tem que estar numa grande ciranda, fazendo a ciranda cirandar; tem horas que a gente vai para cá, tem horas que a gente vai para lá, tem horas em que uma das mãos se solta e a gente vai pegando, eu quero acreditar que possa ser assim”, disse Lia Rodrigues numa recente conversa remota com a também coreógrafa Andréa Bardawil.[7]

Na pandemia, porém, não devemos sequer nos aproximar dado o risco de respirar o “mesmo” ar. Muito do que dançamos está impedido; pois a dança, frequentemente, pede que nosso corpo se lace no corpo de um outro, nos corpos de vários outros; é fato que a dança nos reclama próximos: nossas peles se tocam, nossas mãos se dão, nossos braços abraçam, respiramos juntos. Aqueles que dançam tendem sempre a estar, literalmente, mancomunados e conspiratórios, em insurgência contra as forças da morte. A questão de como seguir dançando frequenta cada um de nós, hoje, mais do que nunca. Como seguir mancomunados quando nossas mãos não se podem dar? Como seguir conspiratórios quando já não podemos respirar juntos? Como se insurgir, dançando, contra as forças da morte e – no Brasil de hoje, cabe a nuance – contra as forças do deixar morrer e as forças do matar? Como seguir fazendo da dança um modo de vida e um manifesto da vida?

A pandemia, em certos territórios, intensifica-se e avança; em outros, modera-se e recua, mas perdura. É fato que, hoje, vivemos ainda atravessados pelo medo e imersos em luto por todos que seguem morrendo nos nossos dias e por tudo que segue morrendo no nosso tempo. Na paisagem diante de nós, qualquer figura que emerge no primeiro plano como força de vida, que se esforça como afeto de alegria, tem alguma tristeza como fundo. Mas isso é tudo o que pode ser agora, é “o que temos para hoje” – e pode ser muito. Importa “escolher, contra o que nos faz tremer de apreensão e nos instala na instabilidade e no pânico, as forças de vida que nos ligam (poderosamente, mesmo sem sabermos) aos outros e ao mundo”, escreveu José Gil num texto intitulado, precisamente, “O medo”. À maneira do que, verde, germina improvável nas frestas do concreto ou do que irrompe pelas rachaduras nele forçadas, sob o pavimento, a vida insiste em se manifestar e se fazer manifesto do que ainda pode vir a ser. Na pandemia, os gestos com que nos laçamos estão agora suspensos e interditados, mas podem e devem insistir como signo; e é como signo em ato e pleno de corpo que podem e devem ser de novo e sempre reivindicados.

Daí que, mesmo na arquitetura das redes que hoje nos enredam, esforçamo-nos para produzir gestos que nos comunem. Seguir dançando, ainda que isolados, é um dos gestos que nos cabem, entre muitos que podemos inventar ou reinventar. “Dance, senão estamos perdidos” é uma conhecida frase de Pina Bausch, a coreógrafa em que os gestos de dar as mãos e de abraçar produziram cenas que nos marcaram a memória. Na pandemia, em danças mínimas, em solos, muitos de nós criam seu próprio primeiro cinema: diante da câmera frontal e imóvel, em plano geral e sem cortes, dançamos. A tela plana duplica a bidimensionalidade dos espaços frequentemente exíguos e sem profundidade; e, no entanto, eventualmente, algo se avoluma na direção de quem vê e o toca. A visão da dança faz algo em nós dançar. Um giro gira em nós. A visão de um abraço faz abraço em nós. “Este planeta está carente de sensibilidade e todos nós que trabalhamos com este lugar sensível, temos trabalho demais para fazer”, disse Dudude Herrmann noutra conversa, também recente, sobre “a dramaturgia da tela”.[8]

Diante do grande planeta, qualquer pequeno gesto parece insignificante, inconsequente e indiferente; um grande entrave à instauração de ativismos em nossos cotidianos se liga ao fato de que o impacto do pequeno gesto no estado das coisas do mundo não é da ordem do experienciável. As escalas de tempo e de espaço do mundo escapam à nossa percepção. No entanto, na pandemia, a virtualidade dos laços se fez afinal experimentar no corpo; agora temos a sensação de que o alcance do corpo a corpo dos nossos gestos pode ser global. Alguém tossiu na China. A sugestão de que haveria apenas seis graus de separação entre quaisquer dos habitantes do planeta já não parece tão quimérica. É uma “lição maravilhosa” que, apesar de tudo, Bruno Latour consegue recolher da pandemia: “o velho modelo de ação que tanto nos desesperava (como um indivíduo vai lutar sozinho contra um sistema esmagador?), na realidade, não faz sentido. […] Não existe sistema capaz de resistir à viralidade da ação política”.[9] Contaminemo-nos dos bons contágios, dos gestos que dançam e dos que nos enlaçam: “ninguém solta a mão de ninguém”.

 

 

 

[1] INGOLD, Tim. On human correspondence. Journal of the Royal Anthropological Institute, vol. 23, issue 1, 2016, p. 16. (Let me take you by the hand. It is a supremely human gesture, and in it, you and I are joined. We hold on to one another and go along together.)

[2] Tim Ingold, professor de antropologia na Universidade de Aberdeen, é autor, entre numerosas obras, de “Lines: a brief history” (2007) e “Life of lines” (2015), ambos publicados pela Routledge.

[3] Idem. (…continually coming into being through processes of growth and movement – that is, in a world of life – knotting is the fundamental principle of coherence.)

[4] GIL, José.  O medo. In: pandemia crítica. Disponível em: https://www.n-1edicoes.org/textos/21. Acesso em: 20 out 2020.

[5] Em sua conferência na Forsythe Lectures, realizada pela deSingel Internationale Kunstcampus, em 2014, o arquiteto Steven Spier confessa que o que vem fazendo nos últimos dez anos é “desempacotar” tal definição e que se interessa por ela principalmente porque pode ser lida como uma definição de arquitetura. Disponível em:

<https://www.youtube.com/watch?v=NI8hRRTTHag&t=106s>. Acesso em: 31 out. 2020.

[6] VIEIRA, Helena. Notas (im)possíveis para um futuro insistente. In: BISPO, Tainã (Org.). Ninguém solta a mão de ninguém: manifesto afetivo de resistência e pelas liberdades. São Paulo: Claraboia, 2019, location 1,162.

[7] Tematizando o espetáculo “Fúria”, de Lia Rodrigues, a conversa foi promovida pelo Laboratório de Dança do Porto Iracema das Artes (CE), como parte do programa “Anatomia de Dança”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=irEDOzCAWR4. Acesso em: 26 out. 2020.

[8] A conversa, também promovida pelo Laboratório de Dança do Porto Iracema das Artes (CE), fez parte da série “Co-laborações remotas”; disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x5xoly8ej6c&t=7171s. Acesso em: 24 out. 2020.

[9] LATOUR, Bruno. Não existe sistema capaz de resistir à viralidade da ação política. El País, 24/07/2020.

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Paulo Caldas

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