LOÏE. 09

Tela – Pele: campo de passagens entre a superfície e a profundidade

12 de November de 2021
Available on:
Portugués
Available on:

Com base em referências estéticas (Riegl, 1901) e filosóficas (Deleuze; Guattari, 1997), sobre a visão háptica, o conceito de visualidade háptica no audiovisual discute imagens que aproximam o corpo do espectador a uma estética qualitativamente táctil. Imagens cujo teor não está na representação, narratividade ou ficcionalidade, mas cuja elaboração estética, a partir da materialidade do filme ou do vídeo, implica na participação afetiva do espectador, sem passar por processos de uma compreensão puramente intelectualizada, racional ou simbólica, mas sim por uma compreensão que acontece nos afetos vivenciados diretamente no corpo.

Laura Marks (2000) associou a visualidade háptica aos filmes que elaboram os campos superficiais e que trabalham com imagens sem clareza, pouco legíveis, emaranhadas umas nas outras, por efeito de superposições. Imagens que inibem a identificação dos objetos e dos eventos retratados, imagens que estão sem distinção, os objetos e pessoas estão próximos da superfície. E esta pode ser densamente trabalhada, apresentar texturas, um alto grau de granulação e conter efeitos de borramento. Para Marks, esses filmes exigem do espectador uma forma autocrítica e mais ativa com a imagem; requerem uma abertura para abandonar um modo único e dominante de ver.

Apontado como um dos sentidos responsável pelo entrelaçameto entre o olhar, o tato e a cinestesia, o háptico é assim tomado como metáfora para discutir o engajamento afetivo do espectador, mas cujo uso não tem a função de criar uma oposição entre o táctil (olhar próximo, superficial, descentralizado) e o óptico (olhar distante, profundo, centralizado). A noção de superfície da tela trazida pela visualidade háptica como fator de aproximação e engajamento do corpo não busca a oposição, mas um modo de fazer acessar outras sensações e experiências além daquelas que estamos acostumados com a visão distanciada, perspectivista, que, ao mesmo tempo, significa uma visão normatizada e muito acostumada a determinados modos de tratamento estético da imagem e, portanto, a padrões de visualização, de estilos e sensório-motores.

Neste sentido, acreditamos ser possível abarcar na experiência, via superfície, uma desestabilização da própria ideia simplificadora de superfície, ou seja, tentar entender a superfície, e portanto, a bidimensionalidade da tela, mais como um campo de passagens do que de limites.

A superfície tem agregado, no ocidente, um valor negativo – um valor de superficialidade, de que algo é visto e vivido de maneira rasa. Esse ponto também está alicerçado em um pensamento que nos leva a valorizar o distanciamento e a profundidade.

A superfície foi definida por Euclides (300 AC), em Elementos de Geometria (COMMANDINO, 1944), como aquele elemento que tem comprimento e largura e, portanto, apenas duas dimensões e, por essa definição, assume um achatamento. É uma área sem profundidade. Importante lembrar que essa definição é uma abstração que serve a operações matemáticas de medidas de espaço, medidas de superfície, na qual sua unidade é o metro quadrado (m2). Mas, para representar, reproduzir, construir uma superfície, é necessário sempre um ou mais suportes ou de um ou mais materiais: um papel, uma madeira, pedras, tijolos, areias, tecidos, telas. E um suporte ou um material é sempre tridimensional, não importa o quanto fino ele seja. Entretanto, os achatamentos das superfícies como ideia estão impregnados, nas nossas relações com as coisas e suas aparências, com sua extensão e seu comprimento, pois se diz da superfície como aquilo que aparece das coisas, sua área visível. É nesse sentido que uma desvalorização da superfície em favor da profundidade tem se configurado na cultura ocidental. Sempre falamos que algo é superficial para dizer que não é bom ou que se trata apenas da aparência. A própria ideia de aparência já é carregado de valor negativo, opondo-se à essência.

A dicotomia entre superfície e profundidade está pautada no mesmo pensamento dicotômico que divide o corpo e a mente, o fora e o dentro, sendo no ponto de vista dicotômico, a superfície uma divisão propriamente dita. Aqui funciona como uma parede, um muro que separa, impossibilitando diálogos, misturas, conexões e transferências de informações, líquidos e imaginações.

Giuliana Bruno (2014), outra estudiosa da visualidade háptica, preocupada com a desvalorização da superfície na cultura ocidental, escreveu o livro Surface: Matters of Aesthethics, Materiality, and Media (2014) relacionando, entre outras questões, como a nossa percepção do espaço, das coisas e do mundo passa, sobretudo, pela superfície da pele, pois é por essa que entramos em contato com o mundo. Em uma entrevista para o lançamento do seu livro, a autora falou:

Quando alguém diz “superficial” geralmente é de uma forma negativa. Por isso interroguei-me sobre o porquê de acoplar essa negatividade a uma forma material que está tão presente nas nossas vidas e é tão central. […] Falar de superfícies significa também mudar a nossa perspectiva do visual para o táctil, porque a nossa primeira superfície é a face – “surface”. A pele expressa a nossa cultura, as nossas emoções, como cobre o nosso corpo e nos permite estar em contato conosco, com os outros e com o mundo. Este sentido háptico de estar em contato é a nossa primeira experiência do espaço. Pensamos que contemplamos o espaço, mas vivemos de um modo háptico, tocando e mexendo. Esta hapticidade é uma parte muito importante do modo como apreendemos o visual e o espaço visual. (BRUNO, 2014b).

Em que medida pode-se pensar em um diálogo entre superfície e profundidade no audiovisual e conjecturar a ideia de que a tela não é um espaço de achatamento, que se encontra profundidade na superfície, ou mesmo, que ela pode abarcar a tridimensionalidade?

Afirmar que a superfície possa conter tridimensionalidade não significa eliminar fronteiras indiscriminadamente ou acreditar em camadas amorfas, onde tudo é transponível e transitável, já que um acoplamento não significa destruir a unidade, mas possibilitar o permear. Por isso, a pele em sua configuração, como unidade que se acopla estruturalmente ao ambiente permitindo passagens e transformações, serve-nos como metáfora. Ao lado da metáfora háptica, podemos aprofundar a importância da pele e, consequentemente, de todo o corpo – e fazer correlações com a tela não apenas como superfície e fronteira, mas na percepção do espaço e sua tridimensionalidade.

A pele é o maior órgão de sentido do corpo humano. Como membrana de trânsito (FERRAZ, 2014) entre o mundo de fora e o de dentro do corpo, com seu sistema de trocas, a pele tem função de decisiva importância para a sobrevivência do ser. Essas trocas que acontecem por reações químicas e físicas, mas também mecânicas em suas camadas (a derme e a epiderme) e, portanto, de forma não achatada, permite pensar os seus pelos, poros, células e terminações nervosas como espaços ou veículos de mediação ou que “a pele é uma superfície fechada em três dimensões e se ramifica nas três dimensões do espaço terrestre, assim como os ossos”. (GIBSON, 1966, p. 114). Sendo assim, pela qualidade constitutiva da pele, em permitir o trânsito e a conexão entre o dentro do nosso corpo e o nosso entorno, pode-se questionar o seu caráter de superfície, ampliando seu aspecto tridimensional nas passagens do corpo. Como cita a autora Deane Juhan, em seu livro sobre consciência corporal (Korperbewusstsein-1987), essas referências complexas entre superfície e profundidade já estão abarcadas desde a formação embriológica da pele que constitui com o cérebro uma unidade desde então.

A conexão entre a pele e o sistema nervoso central tem razões fisiológicas e anatômicas. A pele e o cérebro originam-se da mesma célula matriz, a ectoderme. Apenas o ponto de vista pode decidir se a pele é a superfície externa do cérebro ou o cérebro é a camada profunda da pele. Superfície e núcleo interno resultam da mesma camada e funcionam durante a vida do organismo como uma unidade, separável apenas pelo bisturi da abstração analítica. […] Quem toca a superfície também toca o fundo. (JUHAN, 1992, p. 119).

Ou seja, a pele tem esse potencial de abarcar a profundidade do corpo como a profundidade do espaço, configurando-se como um meio de comunicação entre o dentro e o fora por excelência.

A importância da pele na percepção foi estudada pelo campo estético e filosófico denominado empatia estética. Surgido no final do século 19 e desenvolvido até meados do século 20 por teóricos alemães, tinha intuito de pesquisar a relação entre a observação e a transferência de movimentos e afetos na experiência com a arte. Nesse sentido, sugeriu que não há uma divisão extrema entre os órgãos dos sentidos e, principalmente, a interdependência entre o olhar e o tato foi abarcada por quase todos os seus teóricos como essenciais para a percepção e como um modo de complementaridade entre esses sentidos; uma interação que possibilita entendimento da forma e do espaço e que explica o vivenciar físico na observação de obras de arte. Entre eles, August SCHMARSOW (1896) apontou o tato como fundante para a percepção da tridimensionalidade.

De qualquer modo, a descrição dessa região táctil, que faríamos no escuro, serve para elucidar a reivindicação do indivíduo de nossa espécie ao volume de espaço ao seu redor. Já numerosas relações entre o sujeito e as coisas próximas a ele são fiadas, treinadas e consolidadas nesse toque, em choque e pressão. […] Qualquer percepção do sentido da visão é confirmada ou melhorada por um ou mais acréscimos dos outros sentidos. (SCHMARSOW, 1896/2007, p. 113).

Abordar a capacidade de compreender as passagens da superfície à profundidade, no que se refere à tela do vídeo de modo semelhante à pele, é entender uma transposição como ato de percepção; é entender a superfície não como barreira, mas como teia, tecido, área de trânsito e de locomoção. Neste sentido, é possível fazer uma correlação entre a superfície da pele e a superfície da tela, ambos como mediadores, ligando espaços internos e externos. Voltamos a Giuliana Bruno (2014), que vê a superfície como um meio (Medium), conectando espaços virtuais do mundo do filme e espaços materiais do mundo dos corpos.

Há transferências da pele para a tela, […] a superfície é ela própria um médium. A superfície é um “entre”, é algo que liga o interior e o exterior. Se pensarmos nela como uma pele, num sentido lato, percebemos que é uma fronteira permeável, põe o ser em contato, é uma forma de comunicação. Esta ideia de superfície reflete sobre a origem do médium como uma forma de conectividade, no mundo virtual assim como no material. (BRUNO, 2014b).

A associação da tela com a pele não é gratuita, apresenta-se como um campo de limites e, ao mesmo tempo, de transposição entre as estruturas: uma superfície que implica em si mesmo um adentrar na profundidade ou, ainda, um processo de envolvimento corporal e espacial; um campo visível de passagens que o espectador atravessa.

Segundo Elsaesser e Hagener (2013), a palavra Tela (Screen ou Schirm), na língua inglesa e alemã etmologicamente, não esteve associada a um campo de projeção, de passagens de luz, muito menos à ideia de tornar algo visível. Tanto Schirm quanto Screen origina-se de Scirm (alemão do século 14), que significa sombrinha, indicando proteção contra as intempéries do tempo (sol, chuva, vento) ou, ainda, cobrir. Em Inglês, Screen referia-se a uma disposição em que um quarto, ou em que um espaço aberto é dividido (tal como por um biombo), com a intenção de esconder uma parte do espaço. Screen também significava revestimento ou um filtro de proteção como processo que cobre à luz solar brilhante que protege uma pessoa ou objeto sensível à luz. Essas definições são exatamente o contrário a dar visibilidade a algo ou dar visibilidade a espaços nos quais se possa ultrapassar. Segundo os autores, foi em 1864 que, pela primeira vez, a palavra Screen foi utilizada para designar uma superfície na qual uma imagem ou objeto pode ser representado. E, processualmente, passa a significar o espaço de projeção de imagens.

A proverbial “tela de prata” (silver screen) foi originalmente usado na projeção de imagens com a Lanterna Mágica, um dos precursores do cinema como entretenimento popular. E a técnica de projeção de fantasmagoria conhece o conceito de “tela de fumaça” (smoke screen), porque aqui não é projetado sobre um suporte material, mas na fumaça e vapor: O ar é tornado opaco para que a luz e sombra sejam registradas nele, sem que isso o faça ser percebido como divisão ou obstáculo. (ELSAESSER; HAGENER, 2013, p. 54).

Embora as versões etimológicas da palavra tela no Inglês (Screen) e Alemão (Bildschirm) demarquem mais um campo de separação do que aproximação, a palavra tela do latim tela.ae significa fio, tecido, teia, cuja derivação texere é tecer, fazer tecido ou entrelaçar. Um significado que coaduna com o processo de desenvolvimento deste dispositivo de exibição de imagens em movimento e seu potencial de reverberação em outros sentidos. Seu potencial de mobilizar corpos permite a utilização da metáfora háptica em uma comparação com o funcionamento da pele, como campo de passagens, percepções e entrelaçamentos, pois háptico e óptico, assim como toque e visão, não precisam estar em oposição estrita um com o outro.

É nesse sentido que, apesar de sua preocupação com a superfície, a Giuliana Bruno, no início de sua pesquisa, não atrelou a visualidade háptica, exclusivamente, à superfície como único meio de produzir percepção háptica. Para ela, ver hapticamente envolve também o processo de formação espacial e sustenta que a leitura feita pelo espectador do espaço construído no filme tem um apoio no sentido háptico:

A relação entre o filme e o conjunto arquitetônico fílmico envolve um embodiment, pois se baseia na inscrição de um observador no campo – um corpo fazendo viagens no espaço. Tal observador não é um contemplador estático, um olhar fixo, um olho desencarnado. Ele é uma entidade física, um espectador em movimento – um “trabalho de pele” desenhando o mapa do espaço háptico. (BRUNO, 1997, p. 6).

É exatamente o caráter superficial que possibilita a profundidade, o espaço que se constrói entre as oposições, dissolvendo qualquer modo de apreensão ou fruição única, baseada apenas em um tipo de olhar. Portanto, as relações de tensão que possam ser construídas entre os espaços ópticos e hápticos ajudam a vivenciar a superfície bidimensional da tela para além de uma visão dicotômica dos olhares extremos e separados. Possibilitam viajar nesses espaços como caleidoscópios visuais apoiados nas partes profundas da pele e articulações, pois nenhum olhar é, em si mesmo, totalmente óptico ou háptico, mas fruto de implicações culturais dinâmicas e pode se locomover entre esses espaços.

 

 

Referências bibliográficas

BRUNO, Giuliana. Motion and Emotion: Film and Haptic Space. Revista Eco-Pós, [S.l.], v.13, n. 2, p. 16 – 36, 2010. Disponível em: http://www.pos.eco.ufrj.br/ojs-2.2.2/index.php /revista/ issue/view/24. Acesso em: 17 maio 2015.

BRUNO, Giuliana. Surface: Matters of aesthetics, materiality, and media. Chicago: The university of Chicago Press, 2014a.

BRUNO, Giuliana. Entrevista. Lisboa, 2014b. Entrevista concedida a Liz Vahia Disponível em: https://www.artecapital.net/entrevista-182-giuliana-bruno- Lisboa. Acesso em: 16 dez. 2018.

COMMANDINO, Frederico. Euclides: Elementos da Geometria. São Paulo: Edições Cultura, 1944.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1997. v.5.

ELSAESSER, Thomas; HAGENER, Malte. Film Theorie Zur Einführung. Hamburg: JuniusVerlag, 2013.

FERRAZ, M. C. F. Estatuto paradoxal da pele e cultura contemporânea: da porosidade à pele- teflon. Galáxia, São Paulo, n. 27, p. 61-71, jun. 2014.

GIBSON, James. The Senses Considered as Perceptual Systems. London: George Allen & Unwin LTD, 1966.

JUHAN, Deane. Körperarbeit: Die Soma-Psyche-Verbidung. Ein Lehrbuch. München: Knaur Verlag, 1992.

MARKS, Laura. The skin of the film: Intercultural cinema, embodiment and the senses. London: Duke University Press, 2000.

RIEGL, Alois. Die Spätrömische Kunst-Industrie nach den Funden in Österreich- Ungarn. Wien, 1901.

SCHMARSOW, August. Über die Dimensionen de meschlichen Raumgebilde – 1896 In: FRIEDRICH, Thomas; GLEITER, Joerg. (Hg.) Einfühlung und phänomenologische Reduktion: Grundlagentexte zu Architektur, Design und Kunst. Berlin: LIT Verlag, 2007.

 

Imágenes: Lilian Graça

About:

Lilian Graça

See this author posts

Other articles
Otros Artículos